domingo, 18 de dezembro de 2011

André Fonseca,    "Fluctuat"
17 de Dezembro a 21 de Janeiro de 2012






























Textos:

ANEMÓMETRO
Onde se experimenta a ideia de que ceder ao vento é viajar.

Começo pela lição dos juncos: é fl utuando que a cana, cedendo ao sopro, resiste.
    É um começo como qualquer outro: uma de-cisão (um gesto parecido com
romper, cortar, portanto) que inaugura o discurso difícil, sempre indício de um
escândalo, que impele para a tentativa de dizer de forma diacrónica aquilo que
acontece ao mesmo tempo. Mas das distâncias retórica e  hermenáutica(Bernardes
e Manso, 2011) e das margens das linguagens já todos sabemos. Cabe agora convidar
para outras viagens , outras dist âncias, para outras margens: as que nos ajudem - do
mesmo modo que uma renda delicada ajuda a ver os vazios que simultaneamente
constrói , desvela, limita e multiplica - a intuir, ou entender, a “corpreender” que
“viajar é olhar” (Sofi a de Melo Breyner) e que “o mais profundo é a pele” (Paul
Valéry). Que mesmo no fi m deste parágrafo a leitora de cabeça levantada (Roland
Barthes) que me habita ri , de um riso que confl ui para a fabricação do texto: ri-se
com a memória de Pere Portabella - cineasta Catalão- dizendo(-nos) que “o grande
fracasso do Marxismo foi, na verdade, ter excluído e esquecido a contemplação”.
    Vejamos então:
    Viajar pede um plano, um programa. Sem este acto de elocubrar, deslocarse
é só estar no acto da vitalidade pura e não exactamente nisso a que se pode
chamar viagem. E este plano não é exactamente um itinerário: tem mais a ver com
decidir (ou melhor com “decidir-ir”). Mesmo quando esse desenho que organiza
aparentemente a deriva existe, existe sobretudo para fracassar maravilhosamente.
    Mas esta é uma tensão de qualquer cartografi a: entre os códigos e a vitalidade
pura inapreensível há marés, monções, falhas e outros acidentes náuticos. É no
encontro dessas cartas com a força da espessura navegada (espessura que só
acontece no verbo que precipita os corpos) que se dá o acontecimento.
    Arrisco-me por isto a pensar que há na viagem, mais que um meio do saber, uma
ideia ou escola ética. Porque nela estão sempre inscritas, com a mesma intensidade,
a incrível possibilidade do naufrágio, da desorientação, do desaparecimento e a do
mergulho no itinerário absoluto que é a do projecto de regresso.
    E é aqui onde a confusão entre ir, ter rumo, deixar-se ir sem rumo, partir já
para o regresso, programar um itinerário de descoberta (ideia extraordinariamente
útil para o ofício do navegante esta de que há , ou que pode haver, uma metodologia
para o desconhecido) se torna realmente inabarcável . E no entanto há sempre
o que, na eventualidade de algum regresso, se decide trazer, fazer, fabricar, pôr
(não fosse afi nal a poética esse mesmo movimento de pôr - no sentido de fazer
acontecer) para contar que se foi. E só assim se dá o regresso: regressa-se também
e sobretudo quando se está para testemunhar o verbo ir. Que pela simultaneidade
intraduzível da experiência disso que é ir - seja na pele ou na escala que se escolha,
ou que nos escolha -, qualquer naufrágio ou deriva sem descoberta é uma viagem
quimérica nessa ética (ou critério, se quiserem) da eleição do trazido para mostrar,
para contar, para dar conta de que se foi. O modo de dar conta transforma (senão
mesmo cria - se é que há diferença fundamental?) a viagem e assim, os indícios
(como quem diz imagens-coisa) mais que serem portais de um tempo já feito
e através deles revisitado, são a causa do tempo que contam. Porque a causa,
pensando mais serenamente, é sempre um efeito do efeito, não sou eu que o digo.
    Apenas me ocorre que a travessia é uma desculpa inteligentíssima para o
movimento. E que mover-se é imitar o vento.

MARTA BERNARDES 2011 PORTO



"Fluctuat"

    Quasi desde o principio do mundo, se inventou o uso da navegação,
construindo embarcações com diferentes tamanhos, e confi gurações;
pois que muito antes do Diluvio haviam grandes navios, pois se acharam
deles fragmentos nas escavações de varias minas, aparecendo similhantes
vestígios; pois ainda no anno de 1698, se acharam varias peças de construção
de navios, com signaes de terem servido, e isto se descobrio nas
escavações das minas de ouro, na cidade de Lima.
     Desde remoto tempo se conhece, que a navegação é a arte de conduzir
o navio, ou aquella de lhe determinar o rumo; e vemos agora que
ella tem chegado ao seu maior auge de perfeição; pois a manobra tem
leis fundamentais estabelecidas, e a tatica naval, regras e princípios
certos; bem como a de construir e mastrear os navios, o que tudo está
em estado de perfeição. Tambem se acha estabelecida a boa ordem para
os armamentos, e provimentos dos viveres, e temos conhecimento de
todos os mares; e é nisto que consiste a marinha em geral.

In “Novo Diccionario da Marinha de Guerra e Mercante” Lisboa, 1855


Introduzo com o excerto acima com fi m a imprimir um ambiente geral
à exposição. Diria como que fornecer alguns apetrechos para a viagem.
O mundo da náutica e do mar em geral, sempre me fascinou, tendo o
meu interesse vindo a amplifi car-se desde a minha experiência enquanto
habitante de Istambul. Não foi apenas o gesto de me chegar às margens
para contemplar o horizonte, mas também a vontade constante de entrar
por ele a dentro em busca de chão (fl utuante, pois) para as minhas viagens.
Foram recorrentes as viagens de barco e com elas o portal para outras
passagens, o prazer de me deixar ir. Foram catarses, foram simples
sensações, mas algo me deixava compreender que o veículo, apesar de
todo aquele aparato mecânico, era algo para além do mundo das formas.
Espero que estes dizeres possam fornecer âncoras a todos os que venham
com a maré.

“sem títutlo”
(It’s falling/It’s rising ou It’s running)


Três caixas de madeira, normalmente utilizadas pelos vendedores de
rua, em Istambul, para exporem os seus produtos. A minha ideia quando
iniciava este trabalho era apenas de pintar sobre madeira. Aliciava-me a
riqueza da sua matéria e o seu potencial enquanto suporte.
    Tudo começou por uma tarefa difícil, a escolha de três caixas entre
muitas. Entre veios, pregos e marcas de martelo começam as primeiras
decisões de composição. A camada a acrílico preto foi apenas mais uma
sobre toda aquela densidade de informação.
    O que se vê num primeiro olhar é uma subida (à esquerda), uma
descida e uma subida (ao centro) — depressão, mínimo, triângulo invertido,
espaço negativo do mesmo, ...; e uma subida de novo (à direita). É
sabido que tudo funciona por ciclos e os ciclos pressupõem um início e
um fi m, e que quando se aproxima o fi m, aproxima-se com ele o início.
Falo-vos disto porque me tem ocupado nos últimos tempos e acho que é
pertinente referi-lo aqui, quanto mais não seja para apenas permanecer...
ou nos adiantar, quem sabe, mais qualquer coisa nesta viagem.
    Olhar para aquelas caixas foi/é como “vislumbrar” grandes bases
de dados — memórias, e potenciais receptáculos de tudo o que se pode
vir a densifi car ali. Se quiserem podemos remontar ao tempo em que
aqueles veios guiavam seiva, ou ao momento em que o artesão martelava,
as guias a lápis da construção das caixas, ou até mesmo as marcas mais
despercebidas das suas viagens de barco desde Istambul até ao Porto.
    Talvez elas já tenham hoje, algo mais para contar.


“55º02’45.42’’S 0º47’03.17’’W – 57º27’49.30’’N 33º08’32.52’’W”

Começaram há já algum tempo as minhas primeiras experiências (viagens)
neste meio. Refi ro-me à ferramenta ou dispositivo Google earth
que muitas vezes recorro e do qual me sirvo como matéria de trabalho.
Entre inúmeras experiências, como quem molda um bocado de barro
sem saber o que de lá poderá surgir, decido explorar a baixo da superfície,
num acto de naufrágio (quase) controlado.
    O vídeo é de carácter imersivo e arriscaria hipnótico, representando
uma viagem efectiva entre dois pontos, uma outra escala portanto. Não
me estenderia mais em indagações a este trabalho esperando que ele fale
por si. Contemplemos a viagem!

“Um rasgo fértil (no vazio) (... rota)”

Algumas odisseias virtuais são arrancadas ao seu meio original, para numa
nova experiência à bolina, partir à descoberta sensível num novo suporte.
São superfícies e uma rota que são postas à “deriva”, agora, sobre cartão
prensado. Falo de imagens que veem de vídeos de intensivas horas de
“fi lmagens” sem câmara. Vídeos também eles apropriados do ambiente
Google earth e que inspiram a composição. Já no suporte de chegada
pequenas surpresas acontecem dentro do já esperado comportamento
do material. São rasgos na mancha negra que revelam a matéria base, e
também eles passam a fazer parte da roda das de-cisões.
    Uma pista: a rota acompanha a falha, e o erro é um lugar fértil.


“Placas (roofmate, fl oormate?)”

Estas veem no seguimento óbvio da pintura anterior, por certo contemplando
outras andanças. São fragmentos, são mapas, são camadas, são
reconstruções, são dados novos para a embarcação.

“Assistimos a ventos insuportáveis: O Great Eastern, apesar da sua
massa, dançava como uma pluma sobre o oceano.”*

* VERNE, Julio. “Uma Cidade Flutuante” – “The Great Eastern”

“Piso flutuante”

Para este trabalho tenho apenas uma frase, que somada a estas palavras,
me parece uma boa maneira de bater em retirada.
Não gosto de retiradas.

"A superfície, limite comum do exterior e do interior, é a única porção
da extensão que é ao mesmo tempo percebida e sentida." **

**BERGSON, Henri. Matéria e Memória.
2a ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p.59